PRECLUSÃO LÓGICA. VEDAÇÃO DE COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (VENIRE
CONTRA FACTUM PROPRIUM).
De há tempos a doutrina civilista, em lição que hoje se irradia
para outros ramos do Direito, estabeleceu a impossibilidade da adoção de
comportamentos contraditórios, com base no princípio da boa-fé. Com as devidas
adaptações, tal lição a rigor já vinha sendo aplicada ao processo, nos termos
da preclusão lógica. In casu, porque se valeu de todos os benefícios
processuais alcançados a uma fundação pública, não é lícito à reclamada
dizer-se de natureza privada, seja pela figura do venire contra factum
proprium, seja pela da preclusão lógica.
ESTABILIDADE POR FORÇA DO ART. 19 DO ADCT/CF DE 1988. Empregada pública que se encontra ao abrigo da estabilidade por força do previsto no artigo 19 do ADCT/CF de 1988, faz jus à reintegração no emprego. Exegese da Súmula 390 do TST. Provimento negado.
VISTOS e relatados estes autos, oriundos da 26ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, EM REMESSA DE OFÍCIO e RECURSO ORDINÁRIO, sendo recorrente FUNDAÇÃO DE ARTICULAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA E PESSOAS PORTADORAS DE ALTAS HABILIDADES DO RIO GRANDE DO SUL - FADERS e recorrido GXXXXXXXXXXXXXX.
Insatisfeita com a sentença das folhas 423/432, que julgou procedente em parte a reclamatória, a reclamada recorre ordinariamente (fl. 435/442) dos seguintes itens: estabilidade em função do art. 19 do ADCT.
Contrarrazões do autor às fls. 448/451.
Parecer do Ministério Público às fls.453/457.
É o relatório.
RECURSO ORDINÁRIO E REEXAME NECESSÁRIO.
ESTABILIDADE. ART. 19 DO ADCT.
A ré afirma que o art. 19 do ADCT não se aplica à reclamante porque a FADERS é uma fundação privada. Com base no art. 19, §2º do ADCT, entende possível a demissão “ad nutum”. Entende que o pedido de aposentadoria da reclamante, extinguiu o contrato de trabalho. Entende que existe violação ao art. 37, XVI, XVII e § 10º da CF, eis que vedada a percepção simultânea de proventos e aposentadoria. Invoca jurisprudência do TRT e do STF. Ad cautelam, pede que o termo inicial dos salários seja o cancelamento da OJ SDI-I 177 do TST, bem como a compensação dos valores pagos na rescisão.
À análise.
A reclamante é
empregada da FADERS desde 24.02.75, tendo sido despedida em 17.11.95. Tais
fatos são incontroversos.
De outro lado, os
argumentos relativos à extinção do contrato de trabalho são irrelevantes, pois
que tese já refutada pelo TST, em decisão com força de coisa julgada (fls.
405/409).
A questão
remanescente é apenas aquela relativa à estabilidade do art. 19 do ADCT. Neste
passo, o argumento recursal é de que a
estabilidade se aplica apenas às fundações públicas, sendo a recorrente
fundação privada. Todavia, não há que se acolher tal posição.
De início,
incorpore-se os bem-postos argumentos sentenciais:
“Quanto à natureza jurídica da reclamada, embora o art. 1º da Lei nº 9.049/90 lhe atribua personalidade jurídica de direito privado (fl. 58), não há dúvida de que a ré se trata de fundação pública, porque mantida pelo Poder Público Estadual, inclusive com Diretor-Presidente nomeado pelo Governador do Estado (art. 6º, § 5º, fl. 64), cujos bens, na hipótese de extinção da Fundação, revertem ao patrimônio do Estado (art. 10, fl. 65).”
Além disso, da
própria conduta da reclamada colhem-se elementos que apontam, inequivocamente,
para a sua natureza pública: ela não recolheu o preparo; não se insurgiu contra
a determinação de reexame necessário; é defendida pela Procuradoria do Estado.
Tais dados permitem a rejeição de plano da tese da reclamada de que possua
natureza de direito privado, sendo caso cristalino de aplicação do venire
contra factum proprium.
Tal instituto, em síntese, estabelece que a conduta das partes gera conseqüências jurídicas restritivas na sua esfera de direitos, ante a vedação de comportamentos contraditórios. Judith Martins-Costa ensina que “Na proibição do venire incorre quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) contrariado pelo segundo (“A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium”. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2004, n. 376, p. 110- grifei).
Tal instituto, concebido no âmbito do direito civil, vem sendo
aplicado noutras áreas, inclusive no processo civil, onde relaciona-se com o
princípio da cooperação, que, conforme Fredie Didier Júnior “vem ganhando
força na teoria processual contemporânea[3]. Uma das principais conseqüências
da adoção deste princípio é a revalorização da lealdade processual (e,
portanto, da boa-fé objetiva), que passa a ser atributo inerente ao diálogo do
contraditório. Além disso, o princípio da cooperação impõe que o magistrado
também deve comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva, inserindo-se no
contraditório.(...) O princípio da cooperação e o princípio que veda o venire
contra factum proprium relacionam-se na medida em que compõe o conteúdo da
cláusula geral da proteção da boa-fé objetiva na relação jurídica processual.
A boa-fé objetiva é norma de conduta que colore e qualifica o contraditório. A
proibição de comportar-se contrariamente a comportamento anterior é uma de suas
nuances (“Alguns aspectos da aplicação da proibição do venire contra
factum proprium no processo civil”, in Leituras complementares de direito
civil : o direito civil-constitucional em concreto / Cristiano Chaves de Farias
organizador; Aldemiro Rezende Dantas Junior ... [et al.], JusPodivm , 2007, p. 199-207”
- grifei).
É o mesmo doutrinador quem ressalta que não se trata de novidade, sendo, ao contrário “lição velha, embora aplicada com outros termos. Na sistematização do instituto da preclusão (perda de poder jurídico processual), a doutrina refere-se à preclusão lógica, que consiste na “impossibilidade em que se encontra a parte de praticar determinado ato ou postular certa providência judicial em razão da incompatibilidade existente entre aquilo que agora a parte pretende e sua própria conduta processual anterior”. A idéia de preclusão lógica é a tradução, no campo do direito processual, do princípio do nemo potest venire contra factum proprium (...)”- grifei. E exemplifica: “É o que ocorre, por exemplo, quando a parte aceita expressa ou tacitamente a decisão, o que é incompatível com o exercício da faculdade de impugná-la (recorrer), na forma do art. 503, CPC. Também há preclusão lógica do direito de produzir a prova do fato confessado (ao confessar, a parte perde o direito de produzir prova do fato confessado). Como visto, a parte que deu causa ao defeito processual, não pode pedir a sua invalidação (art. 243 do CPC)”.
Portanto, a rigor a tese recursal sequer poderia ser considerada. Ao se valer de todos os benefícios processuais alcançados a uma fundação pública, não é lícito a reclamada dizer-se de natureza privada, seja pela figura do venire, seja pela da preclusão lógica.
Mais: se efetivamente se tratasse de fundação privada, então a Procuradoria do Estado não teria poderes para defender a reclamada e o recurso ordinário seria inexistente.
Evidente, portanto,
que a reclamada é fundação pública e que a empregada se encontra ao abrigo da
estabilidade por força do previsto no artigo 19 do ADCT, estando corretas as
parcelas deferidas.
Rejeita-se a tese da
adoção da data de cancelamento da OJ como marco inicial dos salários, ante a
ausência de amparo jurídico.
Finalmente, mantém-se
a decisão que indeferiu o pedido de compensação postulado na defesa, pois não
foram demonstrados valores pagos a maior com relação às parcelas postuladas.
Provimento negado.
REEXAME NECESSÁRIO. ITENS REMANESCENTES.
1. DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E FISCAIS.
Correta a sentença ao autorizar os descontos previdenciários e fiscais cabíveis, determinando a comprovação do recolhimento dos valores retidos aos cofres públicos.
2. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
Presente declaração de pobreza (fl. 11) e credencial sindical (fl. 13), faz jus o reclamante ao benefício da assistência judiciária gratuita, sendo devidos, em decorrência, os honorários advocatícios.
ACORDAM os Magistrados integrantes da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso da reclamada. Por unanimidade, em reexame necessário, manter a sentença.
Porto Alegre, 20 de maio de 2009 (quarta-feira).
DESEMBARGADORA MARIA HELENA MALLMANN
Relatora
MINISTÉRIO
PÚBLICO DO TRABALHO