A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA AS RELAÇÕES DE TRABALHO NÃO EMPREGATÍCIAS
Nestes mais de sessenta anos da Justiça do Trabalho no Brasil, o grande debate a respeito de competência sempre se estabeleceu em torno do binômio relação de trabalho-relação de emprego. Antes da alteração de competência introduzida pela emenda constitucional n.45, a Justiça do Trabalho somente era competente para apreciar e julgar dissídios envolvendo empregado e empregador. Assim, através de intenso e extenso debate doutrinal e jurisprudencial, consolidou-se o entendimento de que, por interpretação sistemática dos artigos 2º e 3º da CLT, a competência se restringia às relações de trabalho em que houvesse vínculo empregatício, definido este como sendo a “prestação de trabalho não eventual, por pessoa física, de forma subordinada e mediante remuneração”.
Assim, a definição de relação de emprego está bem assentada na doutrina e jurisprudência, mas o mesmo não se pode dizer da relação de trabalho. Não houve a mesma preocupação de estabelecer contornos claros, ainda que, em regra, possa-se apontar a definição de Maurício Godinho Delgado (Curso de Direito do Trabalho, Ltr, p. 279) como sendo “todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano; refere-se, portanto, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível”.
A título de resumo, podemos dizer que, tanto na relação de emprego como na relação de trabalho, a prestação de trabalho é feita necessariamente por pessoa física. Por outro lado, a relação de trabalho não é também de emprego quando falta uma ou mais dos demais requisitos característicos da relação de emprego: a) não eventualidade do trabalho; b) subordinação do prestador ao tomador do serviço; c) onerosidade. Dizendo de outro modo, antes da Emenda Constitucional n. 45, a Justiça do Trabalho não era competente para as relações de trabalho em que a prestação fosse eventual, autônoma e/ou gratuita.
Os trabalhadores eventuais, de certa maneira, foram alcançados na prática pela competência trabalhista, na medida em que o art. Xx da CLT fixou a competência para as ](pequena empreitada). Assim, todo um expressivo contingente de trabalhadores eventuais (pedreiros, carpinteiros, alambradores, etc.) que laboram por obra certa já é da competência da Justiça do Trabalho, ainda que, não raro, destas relações resultem dissídios de natureza consumeirista e que são apreciados pela Justiça Estadual. Na prática, quando a ação é movida pelo trabalhador contra o consumidor final, este, normalmente, aciona a Justiça do Trabalho. Quando, no entanto, quem demanda é o tomador dos serviços, em geral, o faz na Justiça Estadual. Trata-se de um caso típico de competência concorrente, que se estabeleceu na prática, demonstrando claramente que uma relação de trabalho também pode ser uma relação de consumo.
Os trabalhadores voluntários também não são da competência da Justiça do Trabalho, exceto em casos de que este trabalho encubra uma relação de emprego, situação em que o juiz, com base no art. 9º da CLT, reconhece a situação de fraude e, reconhecendo a realidade contratual, declara a existência da relação de emprego. O mesmo ocorre em situações em que, através da simulação de contratos com fictícias pessoas jurídicas, busca-se descaracterizar a natureza empregatícia da relação contratual. O exemplo mais comum é o das pseudo-empresas de representação comercial, formadas muitas vezes apenas pelo próprio “representante” e sua espoca, tendo como sede o domicílio destes e que nada mais são do que tentativas de fraudar a legislação trabalhista.
A maior dificuldade na caracterização ou não do vínculo empregatício reside, justamente, no requisito da subordinação. No entendimento da doutrina, a subordinação exterioriza-se no fato de que “a atividade do empregado consistiria em se deixar guiar e dirigir, de modo que as suas energias convoladas no contrato, quase sempre indeterminadamente, sejam conduzidas, caso por caso, segundo os fins desejados pelo empregador. “ (Orlando Gomes e Elson Gottschalk). Portanto, seria uma subordinação jurídica, externalizada pelas ordens e comandos dirigidos pelo empregador ou seus prepostos ao empregado, decorrente do poder de direção assegurado ao empregador.
Em outros países, outros conceitos foram utilizados para configurar o estado de dependência que tipifica a relação de emprego. Encontram-se expressões como “ajenidad” (espanhol) , “dependência” (em oposição à independência ou autonomia) ou “trabalho por conta alheia” (em oposição ao “trabalho por conta própria”. Estes conceitos foram construídos no início do século passado e, de alguma forma, reproduzem as situações existentes à época do “fordismo”, das grandes concentrações fabris e da produção de massa. Tal situação alterou-se dramaticamente a partir dos anos setenta. Pressionados pela acirrada competição internacional desencadeada a partir da crise do modelo fordista, as empresas, adotando, em larga escala, a informática na linha produtiva e novos métodos organizacionais, alteraram profundamente as relações de produção, criando-se o chamado “modelo toyotista” ou de “automação flexível”. Tal modelo, adequado às novas exigências de mercado, de uma produção variada, voltado a um mercado volátil e exigente, é essencialmente poupador de mão-de-obra e empurra as empresas para uma concorrência sem fim na redução dos custos produtivos. Em resumo, do ponto de vista que interessa aqui, basta dizer que a redução dos custos trabalhistas passou a ser essencial ao novo modelo produtivo, passando as empresas a adotar estratégias de redução de pessoal (“downsizing”), flexibilização dos contratos laborais remanescentes, além de uma clara opção por fórmulas contratuais que desonerassem as empresas do pagamento de direitos trabalhistas e previdenciários. Operou-se o que convencionou chamar “fuga do direito do trabalho”.
O resultado foi a segmentação do mercado laboral que, grosso modo, foi dividido em duas porções: um “centro”, formado por poucos empregados remanescentes a que se reconhece os direitos tipificados na norma trabalhista; e uma “periferia”, numerosa, constituída por trabalhadores a quem não se reconhece a condição de empregado, sem direitos trabalhistas e com escassa ou inexistente cobertura previdenciária. Esta “fuga do direito do trabalho” assumiu variadas formas, mas se pode fixar em três tipos principais: a) contratação de “pessoas jurídicas” (PJs); b) terceirização e c) trabalho por conta própria.
Assistimos, hoje, uma verdadeira “fuga do direito do trabalho”, que se pode fixar em três tipos principais: a) contratação de “pessoas jurídicas” (PJs); b) terceirização e c) trabalho por conta própria.
Como a Justiça do Trabalho no Brasil reagiu a tal situação?
O primeiro e essencial debate foi, evidentemente, diferenciar as situações de fraude à lei, descobrindo-se, sob o manto formal da relação de natureza cível, uma real relação empregatícia, aplicando-se um dos princípios do direito laboral desde seus primórdios, o que se denominou “princípio do contrato realidade”. Já se mencionou esse labor doutrinário e jurisprudencial em relação às falsas PJs. O mesmo se pode dizer em relação às chamadas “terceirizações”, sejam estas lícitas ou ilícitas. No segundo caso, reconheceu-se a existência subjacente de uma relação de emprego, declarando-se a nulidade da contratação por empresa interposta. No primeiro caso, reconheceu-se a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços pelos créditos trabalhistas do empregado da empresa fornecedora de mão-de-obra. Finalmente, quanto ao falso “trabalho por conta própria”, a Justiça do Trabalho reconhecendo sua competência para declarar a existência ou não de uma relação de emprego, rejeitou a possibilidade de se afastar a incidência da norma trabalhista pela mera formalização de um contrato de trabalho autônomo, quando tal autonomia não ocorria na prática, pois se estava diante de verdadeira relação de emprego.
No entanto, à margem de situações de fraude à lei trabalhista, há de se reconhecer que foram criadas, na maré da “fuga da relação de emprego”, diversas situações que, realmente, escapam dos limites do direito laboral e que, assim, configuram relações novas, que transcendem as figuras previstas na lei trabalhista, mas que, essencialmente , dela muito se aproximam. Ali, continua presente a figura de um prestador de trabalho economicamente dependente –e, por isso, vulnerável- , ligado a um contrato de adesão de natureza civil, assimétrico e, em geral, não regulamentado por lei. Esse tipo de trabalhador, precário, desprotegido do ponto de vista trabalhista, sindical e previdenciário é, depois do desempregado, a principal vítima das novas relações de produção pós-fordistas. Ainda que seja, do ponto de vista sociológico e econômico, um trabalhador dependente, juridicamente não pode ser enquadrado como empregado, já que ausente a subordinação típica da relação empregatícia. Graças aos novos métodos de produção – e superado o estágio civilizatório em que os trabalhadores deveriam ser, dura e repressivamente, enquadrados na nova “disciplina produtiva”, indispensável ao desenvolvimento do incipiente capitalismo – já que não mais são necessárias “ordens” e “comandos de produção” para que cada trabalhador saiba e faça o que tem de fazer. O trabalhador, agora, tem o patrão “dentro de si”, mas continua dele dependendo para sobreviver (e , por isso, obedece às ordens sem que estas precisem ser exteriorizadas !).
Ressurge, assim, o trabalho em domicílio; cresce o trabalho “à distância” (ou tele-trabalho); prolifera o trabalho autônomo prestado a um único tomador, sob rígido controle deste (mas sem que se possa configurar a subordinação pessoal típica prevista na lei trabalhista); aparece o trabalho “em parceria” que somente beneficia um dos parceiros; revive-se, com algum temor, o retorno do trabalho fabril prestado no âmbito familiar (muitas vezes com utilização de mão-de-obra infantil); aumenta o trabalho cooperativado em que, ao contrário do que acontece em outros países, a remuneração do cooperativado é inferior a de um empregado nas mesmas condições; toma conta das profissões ditas liberais o chamado “trabalho free-lancer” ou “de colaboração”, essencial à atividade empresarial, prestado continuamente e sob estrito controle do tomador, mas que “escapa” da relação de emprego pela suposta “autonomia” do prestador “por conta própria”. A cada dia , surgem novas situações de trabalho precário, não previstas pelo legislador, criando-se legiões de trabalhadores desprotegidos: corretores de seguro; transportadores autônomos; corretores de imóveis; técnicos instaladores em domicílio; montadores de móveis.etc. Todos esses trabalhadores são pessoas físicas, que prestam serviço de forma não eventual mediante uma retribuição pecuniária, mas, a rigor, não são empregados, pois são qualificados como prestadores de “trabalho por conta própria”.
Urge, portanto, que se encontre uma solução justa para todos esses trabalhadores precários e que, pelo atraso de nossa ciência jurídica em relação às vertiginosas mudanças produtivas, restaram à margem do direito laboral.
Entende-se que a alteração do
art. 114 da Constituição Federal, ampliando a competência da Justiça do
Trabalho, é uma importante mudança de paradigma, que orienta para uma extensão
para todos os trabalhadores da tutela até então restrita aos trabalhadores com
vínculo empregatício. Tal extensão, em realidade, atende ao comando
constitucional contido no art. 7º caput, da Constituição Federal, que elenca os
direitos sociais devidos a todos os trabalhadores, urbanos e rurais – e não os restringe aos empregados. Em interpretação constitucional, não se
pode entender que o legislador tenha utilizado palavras inócuas ou equivocadas
ao determinar o universo de trabalhadores para os quais seriam destinados os
direitos sociais contidos na Constituição Federal. Assim,
o termo "trabalhadores", contido no caput do art. 7o,
não pode ser se resumir aos trabalhadores com vínculo empregatício,
excluindo-se dos direitos sociais constitucionais a maioria dos trabalhadores
brasileiros, que não possuem carteira assinada. Quando o constituinte
fala em "trabalhadores", quer se referir ao conjunto dos
trabalhadores brasileiros, independentemente da caracterização jurídica da
prestação dos serviços que prestam, beneficiando, assim, a totalidade dos
brasileiros que dependam da retribuição do trabalho para satisfação de suas
necessidades básicas. Tal interpretação
é, sem dúvida, a mais consentânea com o espírito da "Constituição
cidadã" que, recorde-se, elenca os direitos sociais no seu capítulo II.
Parece claro, assim, que o legislador constitucional incumbiu a Justiça
do Trabalho - porque historicamente mais habilitada para fazê-lo - da missão de
encontrar, dentro da própria realidade das novas relações de trabalho, um maior
equilíbrio nos contratos de trabalho autônomo, em benefício de um contingente
cada vez maior de trabalhadores precários.
Esta parece ser ama tendência internacional. Conforme Alfredo
Montoya Melgar, jurista espanhol: “La acción
protectora del Derecho del Trabajo se ha extendiendo a sujetos que, en términos
estrictos, se encuentram en una situación muy
diferente de la del típico obrero subordinado a las órdenes del empresario”
(MELGAR, Alfredo Montoya. “Sobre el trabajo dependiente como categoría
delimitadora del Derecho del Trabajo” in VILALÓN, Jesús Cruz e Outros. “Trabajo subordinado y trabajo autónomo en la
delimitación de fronteras del Derecho del Trabajo. Estudios en homenaje al
Profesor Jose Cabrera Bazán “ Editora Tecnos, Madrid, 1999, p.57). E mais adiante: “El gran desafío del
Derecho del Trabajo está hoy en la reordenación de sus instrumentos de
tutela y también en dar cumplida respuesta al problema de si puede continuar
prescindiendo de la realidad social, dejando desprotegidos a prestadores de
trabajo jurídicamente autónomos, en situación socioeconómica similar a los
trabajadores, de modo que, dentro del “multiverso”
del trabajo autónomo, se pueden concretar situaciones que no pueden dejar por
completo a la regulación civil o comercial y a las que deben aplicarse de algún
grado alguna de las técnicas de tutela propias del Derecho del Trabajo”
(RODRIGUES PIÑERO, Miguel. “Contrato de Trabajo y autonomía del trabajador” in
“VÁRIOS, “Trabajo subordinado y trabajo autónomo en la delimitación de
fronteras del Derecho... ob. cit., p. 38).
Luiz Alberto de Vargas
Juiz do Trabalho