CONTROLE
ELETRÔNICO DE PONTO E
INSEGURANÇA JURÍDICA
Em outro trabalho, aprovado em
Encontro da Amatra IV e em Congresso da Anamatra, já se alertava para os riscos
da proliferação dos sistemas de controle eletrônico do ponto e a falsa sensação
de certeza e impessoalidade que os mesmo proporcionavam, abrindo espaço para
fraudes contra os direitos dos trabalhadores.
Além disso, afirmou-se que “A
experiência prática já comprovou que os sistemas de ponto eletrônico carregam
consigo, ao lado da possível conveniência e praticidade, o risco de facilitar a
sonegação de direitos do trabalhador
(...) A situação atual implica em um substancial desequilibrio nas
relações trabalhistas. O empregador tem poder quase absoluto sobre as
informações relativas à prestação do trabalho, ao passo que o empregado não tem
garantia de que os registros de entrada e saída (feitos por ele mesmo) estão a
salvo de fraude. Urge que se estabeleçam regras mais claras para o uso do ponto
eletrônico, que permitam estabelecer maior equilíbrio na relação. Sem isto, os
abusos são quase impossíveis de evitar e muito difíceis de punir....”[1]
As piores previsões terminaram por
ser confirmadas a partir da
generalização, entre as grandes empresas, do controle de ponto eletrônico
associado ao sistema de compensação horária através de “Banco de Horas”, sem
que se lograssem formas efetivas de fiscalização da regularidade da anotação
horária e do correto pagamento do trabalho extraordinário prestado pelos
empregados.
Cria-se um ambiente de insegurança nas
relações de trabalho, o que impõe repensar a sistemática protetiva prevista em
lei, em especial no art. 74 parágrafo 2o da CLT.
As múltiplas funções do art. 74
parágrafo 2o da CLT
Recorde-se que a finalidade precípua
do art. 74 parágrafo 2o da CLT sempre foi a de permitir que o
empregado, seu sindicato, a fiscalização trabalhista e a Justiça do Trabalho
exercessem um controle eficaz dos horários cumpridos pelos empregados por meio
da exigência de registros diários de jornada que deveriam ser mantidos pelo
empregador.
Assim, para a Justiça do Trabalho
trata-se da responsabilidade do empregador, como titular da direção do processo
produtivo, de manter o histórico da relação laboral, incumbindo a ele o ônus de
apresentar, quando solicitado em processo judicial, os registros diários da
jornada de cada empregado, de modo a tornar possível a perfeita reconstituição
dos tempos de trabalho apropriados pelo empregador ao longo do contrato de
trabalho.
Exatamente porque tais registros
constituem prova pré-constituída, as exigências formais são rigorosas,
entendendo-se não fidedignos os registros caso existam rasuras ou as marcações
não indeléveis (como no caso de
anotação a lápis). .
Igualmente ocorre quando as
marcações são manifestamente inverídicas, como no caso das chamadas “anotações
de horário britânico”, que não registram as horas extras, mas apenas o horário
de trabalho oficial.
Em todos esses casos, na forma
da Súmula nº. 338, o colendo TST
entende-se inválidos os cartões-ponto e admitida como verdadeira a jornada de
trabalho alegada na inicial. Da mesma forma, a jurisprudência é pouco tolerante
quando a marcação do ponto não é feita pelo empregado, mas por preposto do
empregador (em geral, um apontador). Nessas hipóteses, em geral, a presunção de
certeza dos registros fica bastante comprometida, passando estes a serem
entendidos como simples início de prova, sujeitos a serem desconstituídos por
outro tipo de prova, como por exemplo, a oral.
Já para o sindicato profissional e
para a fiscalização do trabalho, a
exigência do art. 74 parágrafo 2o da CLT não se centra tanto nas
necessidades de reconstituição das jornadas de trabalho individuais, mas
estabelecer uma forma de controle social que previna eventuais abusos patronais
no exercício de sue poder de direção. Mais concretamente, busca-se prevenir
exigências abusivas de cumprimento de jornadas de trabalho bem superiores às
previstas na lei ou no contrato sem o pagamento devido. Tão ou mais importante
que o correto apontamento de cada fração de tempo despendido pelo empregado no
trabalho, a principal preocupação, para o sindicato profissional e para a fiscalização do trabalho, é
assegurar, mediante o cumprimento das exigências do art. 74 § 2º da CLT, que o
controle de ponto seja idôneo e, tanto quanto possível, produzido de forma bilateral.
Ou seja, ainda que a
operacionalização do controle de ponto seja feita pelo empregador, por meio de
equipamentos de sua propriedade e viabilizado por pessoal específico designado
pelo empregador, a correta compreensão da referida norma legal impõe que, sobre
tal operação nitidamente unilateral, existam meios de fiscalização que
adequadamente propiciem ao empregado um certo controle sobre o resultado final
de tal operação (ao fim e ao cabo, um relatório de horários de trabalho), de
forma que este represente, de alguma forma, um consenso entre as partes
envolvidas sobre a quantidade de tempo de trabalho diário prestado pelo
empregado ao empregador. Tal consenso torna-se possível pela livre marcação diária
do ponto, pelo próprio empregado, marcação por marcação, sem que haja qualquer
coação por parte do empregador e, principalmente, assegurado que, uma vez feito
o registro, este seja inalterável por qualquer das partes.
A jurisprudência condena
invariavelmente o empregador a pagar as horas extras postuladas pelo empregado
sempre que se constate, nos autos do processo, que não é permitida a livre
marcação do ponto pelo empregado. Infelizmente, são incontáveis os processos
judiciais onde se constata a coação patronal para que o empregado registre
horários fictícios no ponto, normalmente “batendo o ponto” e voltando para
trabalhar.
Da mesma forma, a Justiça do
Trabalho não admite registros-ponto que, na prática, negam a referida bilateralidade na marcação, em que não se
reproduz a totalidade do tempo trabalhado pelo empregado. São, em geral, casos
em que há duplicidade de cartões (um para as horas normais; outro, para as horas extras) ou em que a
marcação das horas extras não informa efetivamente os horários laborados (mas
apenas o número de horas extras prestadas). Em ambos os casos, as anotações de
horas extras ficam a cargo do empregador, inviabilizando que o empregado tenha
um registro material das horas extras prestadas.
Finalmente, do ponto de vista do
empregado, seu interesse é o de compartilhar com o empregador a produção e o
controle dos dados de sua própria jornada de trabalho que terminarão por
determinar o “preço” do trabalho prestado. Trata-se de assegurar que os
registros físicos em que expressam os horários trabalhados sejam mantidos
incólumes e sejam plenamente acessíveis a ambas as partes. Até recentemente,
tais registros consistiam em cartões-ponto, livros de ponto ou fichas de ponto.
Ou seja, materialmente esses dados estavam permanentemente disponíveis ao
empregado, bastando que este compulsasse os registros que ele mesmo,
diariamente, produzia. Assim, percebe-se que o art. 74 parágrafo 2o
da CLT atende a várias finalidades, todas de significativa importância na
regulação da relação de trabalho.
Todas essas finalidades restaram
bastante comprometidas a partir da implantação dos controles de ponto
eletrônicos, especialmente quando associados à sistemática de Banco de Horas,
criando insegurança e incerteza, como se verá a seguir.
O desvirtuamento das regras
protetivas previstas no art. 74 parágrafo 2o da CLT
Utilizando-se da brecha aberta pela
Lei 7.855 de 1989 que deu nova redação ao § 2º do art. 74, admitindo também
controles de ponto eletrônicos, sem qualquer restrição, passaram os
empregadores a utilizar sistemas informatizados que privilegiam as informações
dos administradores do sistema (no caso, o empresário), sonegando-as aos
usuários do sistema; não permitem a fiscalização dos registros internos
inseridos eletronicamente no sistema;
permitem ao administrador do sistema (o empresário) manipule/altere os
dados obtidos, sem que seja possível, sem a permissão do administrador,
reconstituir os dados originais; permite que os cálculos que decorrem dos dados
coletados (ex. horas extras, noturnas, etc.) sejam feitos automaticamente sem
informar os critérios de elaboração de tais cálculos, o que inviabiliza
qualquer conferência por parte de terceiros; produzem relatórios unilaterais,
sem que se possa conferir a veracidade das informações fornecidas, já que não
informam os dados em que se originaram os relatórios (por exemplo, em que dia
de trabalho foram prestadas as horas extras que foram compensadas com folgas).
No limite, pode-se dizer que o
empregador passa a deter condições de estabelecer unilateralmente qual o preço que deverá pagar ao empregado pelo tempo por
este trabalhado, já que o salário final será determinado pelos relatórios que
ele mesmo produzirá, de acordo com os dados que ele mesmo coletará, com base em
seus exclusivos e desconhecidos critérios, sem que qualquer conferência ou
fiscalização seja possível.
Pior: a presunção de validade e
segurança dos registros de ponto, prevista no art. 74 parágrafo 2o
da CLT, passa a ser usada, pelo empregador, em desfavor do empregado,
transferindo-se para este o ônus de provar a real jornada de trabalho
despendida ao longo do contrato de trabalho. Por assim dizer, toma-se uma
versão virtual da realidade manipulada pelo empregador como se fosse a própria
realidade, emprestando-lhe presunção legal de veracidade.
Todas essas distorções, que
desequilibram seriamente a relação contratual entre as partes, colocando nas mãos do empregador o controle
absoluto sobre informações essenciais, não decorrem de nenhuma perversidade
intrínseca dos fabricantes de “software” ou uma conseqüência inevitável da
utilização da tecnologia eletrônica à relação de trabalho.
Apesar de aberrantes, tais situações
são perfeitamente lógicas e compreensíveis sob uma ótica da utilização
supostamente neutra da aplicação da tecnologia de informação à administração do
trabalho. É preciso compreender que a tecnologia nunca se aplica de forma
imparcial, beneficiando a todos os interessados, mas sempre contém um “viés”
que, invariavelmente, assegura a seus proprietários os maiores, senão
exclusivos, benefícios.
Assim, parece evidente que os
“softwares” sejam produzidos de forma a assegurar ao proprietário que o
adquiriu do fabricante o privilégio da informação (que somente será divulgada a
terceiro com a permissão do proprietário) e a livre disposição dos dados
colhidos (sem qualquer restrição operacional). Não há qualquer lógica na
produção de “software” que restrinja seu uso pelo proprietário ou reconheça
qualquer privilégio a terceiro em relação às informações que são coletadas.
Impõe-se, aqui, a lógica comercial pela qual se assegura a quem paga o
benefício exclusivo, não fazendo sentido falar-se em “utilização compartilhada”
na manipulação de resultados ou
produção bilateral de dados primários.
Enfim, a menos que haja
regulamentação legal específica, os “softwares” de controle de ponto
disponíveis no mercado nada mais serão que uma simples máscara de certeza e
confiabilidade, tecida pela mistificação tecnológica, acobertando a manipulação
de informações essenciais à relação de trabalho, qual seja os tempos de
trabalho prestado pelo trabalhador.
Se tal manipulação será ou não
fraudulenta dependerá exclusivamente da boa vontade do empregador, já que
essencialmente, os sistemas informatizados retiram a possibilidade do
empregado, dentro do próprio sistema, demonstrar realidade diversa daquela que
é apresentada/construída pelo empregador.
O sistema de ponto eletrônico
não oferece, efetivamente, nenhuma garantia de correção. Se é certo que o
empregado pode visualizar o horário digitalizado quando emite o sinal para o
registro de horário, também é certo que, a partir de então, o empregado não tem
mais nenhum contato com este registro que é encaminhado para um computador
central da empresa, muitas vezes fora da própria localidade daquele
estabelecimento. Em tese o cartão deveria vir, no final do mês, para o
empregado, pelo menos, assinar. Mas
ocorre com freqüência de não constar sequer sua assinatura.
Mesmo naqueles relatórios em
que consta a assinatura do empregado, não há um registro que possa ser conferido pelo empregado com aquele que
é apresentado, eletronicamente, pela
empresa.
As empresas têm investido
soma considerável em dinheiro para instalar o sistema eletrônico de ponto.
Entretanto, não tomaram a providência mais elementar e que não deve ter custo
tão elevado porque se trata de procedimento corriqueiro, por exemplo, em
qualquer estacionamento de Centros Comerciais ou mesmo em qualquer operação dos
caixas eletrônicos de Banco. Tratar-se-ia de, na medida em que o empregado visualizasse
o horário e o registrasse, a própria máquina (relógio eletrônico) emitisse um
comprovante daquela operação. Esta seria a única forma do trabalhador ter um
controle pessoal do horário realizado e
do horário efetivamente registrado pela
empresa.
Não é crível que ao receber
seu cartão no final do mês, cartão com o qual não teve mais contato durante o
mês inteiro, possa o empregado recordar qual a hora exata em que registrou seu
horário nos primeiros dias daquele mês. Não é lícito exigir-se do empregado tal
magnitude de memória. Além disso, houvesse o singelo comprovante da
operação de registro – como há comprovante de cada operação eletrônica para
qualquer consumidor - , poderia o empregado, ao final do mês confrontar os
horários anotados no relatório que vem da empresa com os registros
individualmente emitidos pela mesma máquina.
Esta exigência de emissão de
comprovante de cada registro deve ser feita pelo Ministério do Trabalho e
Emprego, no uso das atribuições a ele cometidas pelo próprio art. 74, § 2º da
CLT:
§ 2º - Para os estabelecimentos de
mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de
saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho,
devendo haver pré-assinalação do período de repouso.
Finalmente, é preciso levar
em consideração, na exegese da matéria, que a parte final do § 2º do art. 74 da
CLT com a redação
dada pela Lei nº 7.855, de 24.10.1989 onde indica: devendo haver pré-assinalação do período de repouso deve ser
considerada revogada, por incompatível, pela Lei 8.923/94 que introduziu o § 4º
no art. 71 do Estatuto Consolidado, considerando hora extra o intervalo de uma
hora, quando não concedido. Se o intervalo deve ser integralmente concedido,
sob pena de ser integralmente pago, não cabendo sequer à negociação coletiva
suprimi-lo ou reduzi-lo, consoante Orientação Jurisprudencial nº. 342 da SDI- I do TST, que adotamos, é curial que a concessão deste intervalo deve
ficar corretamente registrada, não se podendo admitir a pré-assinalação.
Propostas :
1)
os
controles eletrônicos de ponto não atendem as exigências do art. 74 parágrafo 2o
da CLT. Assim, se a norma legal expressamente prevê a possibilidade de adoção
pelo empregador deste tipo de sistema de controle, há de se reconhecer a
impossibilidade prática da utilização deste de forma que resulte relatórios
confiáveis dos horários de trabalho despendidos pelo empregador. Não se deve reconhecer
a tais registros eletrônicos qualquer valor probatório. Em tais casos, deve ser adotado o
entendimento jurisprudencial do inciso III da Súmula nº. 338 do TST,
invertendo-se o ônus da prova da jornada para o empregador e prevalecendo, se
dela não se desincumbir, o horário declinado na inicial;
2)
por
decorrência do item anterior, tem-se como inválido qualquer sistema de Banco de
Horas com base em controle eletrônico de ponto, já que torna inviável qualquer
controle das compensações realizadas;
3)
não se
admitirá como confiável qualquer relatório de pagamentos de horas extras com
base em planilhas eletrônicas de cálculo em que não se apresentem
explicitamente os algoritmos em que se basearam os cálculos, ou seja, as
fórmulas matemáticas que geraram os resultados ali apresentados;
4)
é
conveniente que, por modificação legislativa, tenha o Ministério do Trabalho
responsabilidade de fornecer certificado de aprovação em relação a “softwares” de controle eletrônico de ponto,
exigindo que os mesmos explicitem, desde a fábrica, informações básicas como os
privilégios de manipulação de informações colhidas pelo proprietários. Tais
“softwares” devem ter seus códigos-fonte depositados no Ministério do Trabalho,
disponíveis para consulta por autoridades administrativas e judiciais;
5) na regulamentação dos cartões-ponto
eletrônicos, que deve ser emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, consoante § 2º do art. 74 do Estatuto Consolidado,
deve ser exigida a emissão de comprovante de cada registro que deverá ficar de
posse do empregado;
6) a parte final do § 2º do art. 74 da CLT
dada pela Lei 7.855/89 precisa ser
entendida como revogada, por incompatível, pelo § 4º do art. 71 introduzido pela Lei 8.923/94;
7) A
cópia desta tese, após aprovação, deve ser enviada, pela AMATRA IV, para a
Delegacia Regional do Trabalho como sugestão do Congresso para a providência proposta no item 5.
Montevidéu, 20 de setembro de 2006.
Antonia
Mara Vieira Loguércio e Luiz Alberto de Vargas, Juízes
do Trabalho, RS.
(homepage
Vargas: http://sites.uol.com.br/lavargas)